27 agosto, 2007

Poética

I

A arte como artifício, a partir de Sócrates, esteve sob o foco dos olhares críticos de pensadores preocupados em questionar a sua utilidade, ou ainda, classificar sua finalidade, conceito e desvendar sua natureza: o homem passou a pensar a literatura. Platão, em A República, Aristóteles, na Arte Poética e Longino, em Do Sublime, dedicaram-se ao tema e são fontes básicas da teoria literária até hoje.
Com o passar dos séculos e o surgimento de novas concepções de literatura e das diferentes necessidades dos homens, o conceito de teoria literária passaria por uma longa reformulação, reaparecendo no início do século XX com o Formalismo Russo (Chklovski, Jakobson, Tynianov) .
Este texto propõe-se a refletir as questões referentes ao estudo da palavra escrita, bem como seus diferentes pontos de vista e sua evolução de acordo com os conceitos estabelecidos pelos autores anteriormente citados.

II Filosofia e Arte

No livro II de A República, Platão sugere a formação da educação do cidadão governante do Estado, referindo-se a literatura. O autor faz uma série de censuras moralistas quanto à natureza e valor das histórias narradas a seus jovens cuja capacidade de interpretação foi desconsiderada, conforme trecho abaixo:

“Nenhuma só palavra deverá ser pronunciada sobre as guerras no céu, as tramas e conflitos dos deuses entre si, porque não são verdadeiras... Um jovem não sabe distinguir o alegórico do literal.” (David Daiches, p.20)

Talvez as rédeas do ascetismo filosófico e a temperança moralista do fundador da Akademía fizeram-no negar sua própria natureza humana, quando afirma que a inspiração do poeta se dá por um estado de transe, ou seja, através de poderes divinos; pois o gênio poético é inerente ao homem e não às forças sobrenaturais.
Além disso, sua teoria do conhecimento verdadeiro (epistemologia) se baseia no princípio dos três mundos[1] quando se refere à arte como imitação da verdade. Assim, a arte, em sua sociedade perfeita, tem apenas caráter pedagógico, é limitada e vazia, ou seja, sem emoção.

Aristóteles, discípulo de Platão, escreve um tratado das artes da palavra falada e escrita; utilizando-se da idéia defendida por seu mestre, ele a subverte criando o conceito de mimese[2]. Em seu estudo, Aristóteles busca a essência da literatura de imaginação, categorizando seus diferentes formatos e características (gênero épico, dramático e lírico) a fim de encontrar a perfeição e o valor de uma peça. A arte poética para Aristóteles é verdadeira, há criação e tem como finalidade purgar os sentimentos:

“Seu objetivo é a catarse, ou mais exatamente obter, provocando a compaixão e o temor, a purificação da emoção teatral.” (Aristóteles, p. 232)

Mais tarde, ainda na Grécia, novas questões emergem considerando a relação autor, obra e leitor. Longino propõe uma teoria sobre o valor da literatura, sendo esta a primeira teoria afetiva da literatura, atribuindo-lhe três características: arrebatamento do leitor, sublimidade da obra e a capacidade do autor de mover pelo pensamento e a paixão. Para Longino, a sublimidade é o maior de todos os engenhos da literatura:

“O mérito de uma obra literária pode ser julgado, segundo Longino, por introspecção de parte do leitor ou ouvinte: se for arrebatado e transportado ao êxtase pela grandeza e paixão da obra, ela será meritória.” (David Daiches, p. 53)


III A quase Ciência da Literatura

Surge em Moscou no século XX um grupo de críticos que se preocupa unicamente com os estudos da linguagem, distanciando o enfoque de outras áreas do conhecimento, como a Filosofia, a Psicologia, entre outras.
O trabalho crítico dos formalistas russos tinha como objeto a literariedade do texto, isto é, o quê o torna literário: arquitetura, simbologia, imagem e sonoridade[3]:

“A poesia é linguagem em sua função estética. Deste modo, o objeto de estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária (...) Se o estudo da literatura quer tornar-se uma ciência, ele deve reconhecer o processo como seu único herói.” (Toledo, p. IX)

Diferentemente de outros teóricos, os formalistas descartam a emoção como critério conceituador de uma determinada obra literária, é um efeito secundário. Dentre os vários recursos artísticos que ocorrem no trabalho poético, o processo de singularização[4] dos objetos por meio das imagens é o que provoca o estranhamento no leitor – pois a finalidade da arte não é tornar a imagem próxima de nossa compreensão, e sim, criar uma nova visão, uma percepção particular do objeto:

“... dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos...” (Toledo, p.45)


IV

O conceito de literatura não pode ser reduzido facilmente, pois se trata de um fenômeno multifatorial e que por sua própria natureza – criação humana, retém nuances dinâmicas, as quais são responsáveis por sua transformação.
Vimos que na Grécia Antiga a crítica literária surgiu como uma tentativa de classificação moralista, o que logo foi refutado por um pensamento mais analítico e minucioso da natureza e o valor da arte poética. Ainda durante a Antiguidade, outra teoria vem à luz, considerada a primeira teoria afetiva da literatura. Pela primeira vez, leitor, obra e autor formavam a tríade responsável pelo valor da ARTE.
Em tempos mais recentes, deparamo-nos com um grupo de jovens que, cansados das análises literárias agrupadas a outras disciplinas humanas, formam a Sociedade para os Estudos da Linguagem Poética com o intuito de estudar a linguagem poética em si: construção, simbologia e recursos.
Por fim, cada época interpreta e entende passado e presente de acordo com sua própria maneira de pensar. Daí a necessidade sempre renovada de refletirmos sobre os textos clássicos e contemporâneos a fim de reformularmos nossos conceitos.




[1] Mundo das idéias, mundo real e mundo da imitação, de acordo com Platão, todas as criações já foram concebidas no primeiro mundo, sendo a criação humana uma cópia afastada da verdade.
[2] Imitar não é copiar, mas representar a realidade por meio da imaginação.
[3] Os formalistas russos foram os primeiros a sistematizar a função da sonoridade na poesia (assonância, rima e etc)
[4] “O procedimento de singularização em L. Tolstoi consiste no fato de que ele não chama o objeto por seu nome, mas o descreve como se o visse pela primeira vez.” (Toledo, p.46)