20 julho, 2009

O Canibalismo Amoroso - Affonso Romano de Sant'Anna

Segue a introdução do livro que comecei a ler essa semana, só para dar um gostinho...
Meu desejo é...

De uma certa maneira, este livro pretende escrever a história do desejo em nossa cultura. A história do desejo dramatizado através da poesia. Os poetas sempre foram considerados os grandes cantores do amor. Pois aqui eles nos servem de guias. Na verdade, através da linguagem deles estou querendo falar das fantasias eróticas do homem comum. Se a história do homem é a história de sua repressão, estudar o desejo e a interdição é uma maneira de penetrar melhor nessa mesma história. Aliás, se os poetas não representassem o imaginário social, suas obras não resistiriam nem teriam tido importância na configuração ideológica da comunidade. Portanto, esses autores que aqui estudo não são nem mais nem menos neuróticos que seus leitores. Se os leitores precisam de suas obras para elaborar suas fantasias é que esses textos são o espelho da fala alheia.
Por isso algumas partes têm subtítulos que se parecem a romances de folhetim ou de aventura. Este é um livro de história, onde o personagem principal é o Poeta-Édipo diante da Mulher-Esfinge. Daí esses capítulos do folhetim do desejo com títulos assim: “Ofélia e o Cisne no espelho líquido da morte”, “Do Pan violador ao Arlequim sedutor”, “O macho castrador reage ante a mulher ameaçadora” etc. E cada capítulo se abre com algumas “proposições”, que são a síntese do enredo, para que o leitor se organize melhor nas peripécias inconscientes do texto.
Adianto que este não é um estudo psicanalítico de autores, mas de obras e textos. Não estou, em princípio, interessado em detalhes biográficos de determinados indivíduos, mas preocupado em localizar em seus textos os sintomas que revelam o inconsciente dos textos. Desse modo, estou interessado no inconsciente dos textos. Esse inconsciente surge aqui como sinônimo de ideologia. Entender o inconsciente desses poemas é entender o inconsciente de uma comunidade e, portanto, sua ideologia amorosa. Assim, o que seriam neuroses individuais se transforma em alucinações coletivas, socializadas pela linguagem literária. Nesse sentido, tomo o texto com uma manifestação onírica social. Considero o texto como uma forma de sonho coletivo, pois os leitores abrem seu imaginário às provocações do imaginário do poeta e aí se hospedam. As metáforas e imagens passam a ser de utilidade pública. Estou, portanto, encarando o texto também como uma forma de mito. Se nas comunidades primitivas os mitos serviam para a tribo expressar seus temores, anseios e perplexidades, o texto poético, entre outros, tem essa função antropológica em nossa cultura. O poeta é o xamã que, ao invocar suas alucinações, faz com que, através delas, toda coletividade reviva seus fantasmas.
De uma certa maneira, este livro é também a história da representação do corpo nos (des)encontros amorosos. Sintomaticamente, aí se verá que o corpo feminino ocupa grande parte do discurso, enquanto o corpo masculino é silenciado. E, reveladoramente, embora o corpo masculino esteja ausente, a voz que fala pela mulher é a voz masculina. Essa é uma constatação aparentemente simples, mas de conseqüências graves. Por onde andou o corpo do homem durante todos esses séculos, salvo raríssimas exceções que, por serem tão excepcionais, só confirmam a regra? Evidentemente, essa ausência do corpo masculino e essa abundância do corpo feminino começam a ser explicadas pelo fato de que o homem sempre se considerou o sujeito do discurso, reservando à mulher a categoria de objeto. Como sujeito, portanto, ele se escamoteava, projetando sobre o corpo feminino os seus próprios fantasmas. Aí ele se porta como ventríloquo: o corpo é d outro, mas a voz é sua. Certamente, aí está também um preconceito histórico, segundo o qual o homem se caracteriza pela razão, pelas qualidades do espírito, enquanto a mulher é só instinto e forma física. A conseqüência disso é múltipla: transformada em objeto de análise e de alucinações amorosas, o corpo da mulher também é o campo de exercício do poder masculino. O homem, então, fala sobre a mulher, pensando em falar por ela. Descreve seus sentimentos, pensando descrever os dela. Imprime, enfim, o seu discurso masculino (muita vez machista) sobre o silêncio feminino. Certamente, essa situação se alterou, sobre tudo nos últimos vinte anos. Mas, por questão de espaço e método, não analiso as produções mais recentes. Isso é assunto para outra pesquisa.
Pode parecer estranho o que vou falar, mas a analise do imaginário amoroso mostra que a nossa cultura está cheia de péssimos amantes. E, repito, os poetas não inventaram nada. A análise desses textos, sob a ótica psicanalítica, revela um desajustamento entre o real e o imaginário, e confirma a afirmativa de Platão, de que desejo é indigência. Esses textos são uma espécie de “relatórios” e “depoimentos” sobre a vida amorosa, antes que os americanos vulgarizassem esses procedimentos para saber da vida erótica das pessoas. A rigor, a literatura, como produto cultural, foi sempre o lugar das grandes confissões, porque nela o desejo sempre expôs sua ânsia de realização. Escrever é desejar.
É espantoso ver (com a ajuda Antropologia,da Sociologia e da Historia) como o medo às mulheres (a misoginia) é uma praga, desde as tribos mais primitivas às sociedades mais industrializadas. È aterrador como o mito da mulher castradora, o mito da vagina deitada, da mulher aranha, e da serpente venenosa vem da antiguidade aos textos mais modernos. Já na Grécia, estava aquela Esfinge sufocando os impotentes. Lá está Echidna, metade serpente e metade mulher; lá está Charibdes – mulher sanguessuga engendrada pela Mãe Terra; já Omfalo, como Deusa Terra matava seus amantes; Empuses e Keres eram ninfas-vampiro, e esta bebia o sangue dos jovens apos a batalha. E existe uma Afrodite – conhecida como “Andrófoba” – que assassinava seus amantes como as deusas Ishtar e Anat. As Harpias eram as mulheres-demônio, Melissa era a abelha rainha e Medusa era uma das Górgonas castradoras dos homens. E, entrando pela mitologia germânica, a Walkírias atualizam as Amazonas na castração erótica mortal. Todas essas figuras complementam os textos sagrados, que nos falam da maldade devoradora de Kali, Lilith e Eva.
Por isso, já que a literatura é o mito rrevisitado, aí estão as mulheres fatais, como Salambo (Flaubert), Carmen (Merimée), Herodiade (Mallarmé), Cleópatra (Gauthier), Salomé (Wilde), Kali (Swinburne) tantas ouras, que o imaginário Greco-cristão construiu esquizofrenicamente para dramatizar o temor de Eva e amor de Maria. Portanto, a historia da metáfora amorosa é, em grande parte, a historia do medo de amar e da incapacidade de vencer fantasmas arcaicos e modernos. É clar que essa historia é a historia contada por homens. E, posto que o homem se elegeu como redator da historia, escolheu para a mulher o papel do outro, colocando nela a imagem do mal e da desagregação.
Uma coisa me fascinou entre outras neste estudo: ver como cada época organiza literariamente seu imaginário erótico. É com se fosse colocada uma linguagem ou uma moeda em circulação e, de repente, todos começam a expressar seus fantasmas dentro daquele código. Como se organiza essa linguagem dentro, acima ou a despeitos dos conhecidos “estilos de época”, é matéria de meditação, e a isso me refiro varias vezes dentro desse livro. Por exemplo, durante o Parnasianismo, o padrão feminino de beleza foi representado pela estatua de Venus e todos os poetas se transformaram em escultores-cultores desse mito, esculpindo em seus versos o seu pulsante desejo. Já no Simbolismo, passa-se dessa estatua desejante e desejada como uma Esfinge, para a temática da noiva morta. Quase todo poeta descreve uma noiva morta, embora isso nada tenha a ver com a biografia de cada um, pois maioria deles morreu burocraticamente (in)feliz e casado. No entanto, a poesia está cheia de cadáveres de virgens e Ofélias, visitas a cemitérios e um definhar constante dos amantes ante os caixões. A mesma coisa a respeito das freiras mortas em suas celas, como se houvesse ocorrido com elas e com as noivas alguma epidemia, ou como se o fato de se falar tanto de freiras e monjas fosse sinal de algum surto espiritual que teria levado tantas virgens aos conventos. No entanto, isso não pode ser medido pelo real, mas, sim, pelo imaginário, que se organiza de acordo com outros imaginários importados de outras culturas. Parafraseando conhecida corrente sociológica, pode-se dizer que se instituiu uma política ou economia do imaginário dependente, que faz com que, aqui nos trópicos ou na fria Noruega, se retrabalhem as alucinações de Baudelaire e Poe.
Tendo esse estudo me obrigado a mergulhar mais fundamente em certos períodos, com o Parnasianismo e o Simbolismo, muito pouco estudados por causa do preconceito que o Modernismo lançou contra o século XIX, de repente me defrontei com descobertas fascinantes, que ajudam a entender melhor nossa cultura e ideologia. Um dia ainda se poderá fazer uma reanálise do Modernismo, para se pesar esse prejuízo que nos causou com sua febre de recomeçar do zero as coisas. Pareceu-me que os poetas do Parnasianismo e Simbolismo, entrevistos como autores sintomáticos, podem nos fornecer um rico material para a compreensão literária de nossa cultura. Por pouco, por exemplo, quase não transformo o estudo dos poetas chamados de decadentes e simbolistas num livro autônomo. Mas, tendo resistido a essa tentação e chegando a poetas como Bandeira e Vinícius, procurei revelar outro Bandeira e outro Vinícius que não aqueles conhecidos. E é interessante constatar como a obra de Bandeira está muito mais ligada às matrizes ideológicas do século XIX do que se pensa. E, de repente, me vejo utilizando-o para acabar de entender o que foi o crepuscularismo erótico e estético ao tempo da art nouveau e da belle époque. Por outro lado, e Manuel Bandeira, a dualidade do amante, entre a santa e a prostituta e a constituição de uma prostituta sagrada como simbiose, dramatizam um problema secular, que se espera nossa cultura esteja esgotando. Vinicius é um poeta muito mal conhecido. Sua poesia, sobretudo a inicial, é de suma importância para se conhecer a utilização de mitos arcaicos na literatura moderna. Sua fragmentação dionisíaca e órfica, entre a “mulher única” e “todas as mulheres”, remete para uma esquizomorfose histórica. Meu estudo se interrompe com Vinicius, porque ele fecha um ciclo de visão da mulher que nos vem do Romantismo. Daí para a frente, a questão do desejo se torna mais diferenciada e parece ter passado por um momento histórico, com a grande liberação erótica dos anos 60 e o surgimento de várias outras linguagens e posturas ideológicas realmente instaladas na modernidade. Mas sobre isso tive de me abster de tratar, não só porque é, em si, uma vasta pesquisa, como também porque sou produtor de poesia, que tenta organizar-se dentro de uma nova visão da realidade, onde o amor entre o homem e a mulher se transforma.
Enquanto ia escrevendo esse livro, em cerca de dez anos de pesquisas, cada vez mais me convencia de que o que estava dizendo aqui, sobre a literatura brasileira, era valido para a grande maioria das literaturas ocidentais de que tenho notícia, e poderia ser exemplificado também na música, no teatro ou nas artes plásticas. Durant as pesquisas, várias vezes fui às literaturas francesa, inglesa, italiana, alemã, portuguesa e espanhola, para verificar o trânsito de certas imagens obsessivas do desejo, e de lá voltava com a confirmação da universalidade refletida na literatura brasileira. Estou convencido de que estudos paralelos (e melhores que este) podem ser desenvolvidos, tomando-se aquelas literaturas como objeto, e assim se entenderá melhor o que é a história do desejo no Ocidente.
Pensei, originariamente, em intitular este livro assim: “O Desejo e a Interdição do Desejo na Poesia Brasileira”. Nessa fase, cheguei a publicar um ensaio: “Literatura e Psicanálise: revendo Bilac”, que está no meu livro Por um Novo Conceito de Literatura Brasileira. A idéia do canibalismo ainda não havia se configurado tão claramente nos textos que estudava. Naquela direção, estudaria a questão de outra maneira: tratava-se de ver como o desejo se deixava representar, tanto na figura da mulher quanto na figura da pátria e na própria palavra usada pelo poeta. Assim, em poemas como “O Caçador de Esmeraldas” (Bilac) e “Martim Cererê” (Cassiano Ricardo), a pátria era a mulher onde o conquistador-colonizador ia verter o sêmen do progresso. Confirmava-se a falocracia econômica, num cruzamento da Psicanálise com a História e a Sociologia. Por outro lado, tomado como fetiche, a palavra (sobretudo nos textos onde o poeta confessa a sua ars poética e nos chamados movimentos de Vanguarda) converte-se no objeto da pulsão erótica. O poeta fala da palavra como se fala de uma mulher. Não é outra, aliás, a direção do discurso filosófico e estético ocidental: a verdade é uma mulher atrás de um véu, e cabe ao pensador viril despir, possuir ou violentar esse ser desejável e desejante com seu logos spermaticos.
Ditas, mais ou menos, algumas das coisas que pretendi, agora confesso algumas carências deste livro. Por exemplo: preferi trabalhar apenas com poesia, por questão de método, mas se poderia desenvolver igual estudo sobre a ficção. Dezenas de alunos meus realizaram teses de mestrado e doutorado explorando esses caminhos no romance, demonstrando como é fecunda essa linha de pesquisa. Por outro lado, intencionalmente, não me concentrei nos textos escritos por mulheres: isso seria uma outra empreitada, para a qual estimulei sobretudo alunas em suas teses e projetos de pesquisas. Sei que só quando se desentranhar do silencio a voz feminina recalcada, se terá um panorama mais amplo da história do desejo em nossa cultura.
As analises de poemas, aqui, não são exaustivas. Tive de me conter para não realizar aquilo que nos seminários e cursos tenho a oportunidade de desenvolver com os alunos. Seria, no entanto, interessante publicar, complementarmente a estas analises, um dia e em outro espaço. Por outro lado ia percebendo que, ao estudar o Romantismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, grande numero de autores menores e desconhecidos ajudava a reconstituir uma teia de significados importantes para a análise do inconsciente ideológico. Por serem autores menores, cristalizavam com mais facilidade a linguagem alheia. Eram autores sintomáticos. Por outro lado, como a maioria dos autores estudados viveu e escreveu em completa ignorância do que era a Psicanálise, demonstravam uma espontaneidade às vezes comovedora. Certamente, alguns autores modernos, já sabedores dos mecanismos expostos a partir de Freud, acautelam-se mais ao escrever; disfarce que muita vez se converte em denuncia.
Aproximando-me do fim, esclareço que esse estudo é interdisciplinar por natureza. A Psicanálise aqui é o fio condutor, em torno do qual se armam os conhecimentos antropológicos, sociológicos, históricos e literários. Por outro lado, utilizei-me tanto de Freud e Jung quanto de Melanie Klein ou Lacan, quando julguei necessário e procurando um discurso de coerência que atravessasse o discurso deles e de outros ligados a essas escolas. Muitas vezes, surpreendi-me com o fato d que Freud, Lacan ou Jung pudessem ser falocêntricos, como hoje se tornou fácil demonstrar. Espanta o caráter de enigma que conferem à mulher, como se estivessem realmente diante de outro. É sintomático que seja Freud quem tenha dito: “A grande questão... para a qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza da mulher é a seguinte: O que querem elas enfim?”.
O titulo do livro, O Canibalismo Amoroso, por cobrir praticamente todas as áreas em estudo nesse volume e pela multiplicidade de significados, pareceu-me sinteticamente mais justo. Preferi não teorizar, nesta introdução, sobre esse assunto partir logo para a análise objetiva dos textos, introduzindo, aos poucos, a teoria sobre o canibalismo, toda vez que fosse necessária. O canibalismo é um traço em nossa cultura, muito mais significativo do que se pensa, tendo gerado até movimentos estéticos vanguardistas na Europa e no Brasil no princípio do século. Não é a toa que o cristianismo é tido como representante, no Ocidente, da ordem canibal ancestral. A idéia do ágape cristão (ceia do amor) e o ritual da hóstia (palavra que significa “vitima sacrificial”) sã uma atualização de um rito intemporal, onde deuses comem homens, homens comem deuses, ou, então, são dramatizados no sangue dos animais mediadores. O canibalismo como ritual pode ser visto, por exemplo, na era cristã. Os epiléticos, em Roma, bebiam o sangue quente dos gladiadores, e o médico do Papa Inocêncio VIII recomendou-lhe sangue de três crianças de dez anos. Da mitologia grega aos mitos indígenas brasileiros, abundam a omofagia e a antropofagia. Por isso, o canibalismo amoroso é apenas uma das formas desse ritual; talvez o que concentre o patológico, o religioso, o alimentar, e, imaginariamente, o mais viável e compulsivo. O leitor verá que, da mulata romântica, abatida e servida na cama-e-mesa do senhor, à “Receita de Mulher” de Vinicius de Moraes, a metáfora persiste como um álibi duplo. O canibalismo amoroso pode realizar-se através da violência sadomasoquista ou através da sedução órfica e dionisíaca.

16 julho, 2009

Aquisições na Augusta



Um passeio pela Augusta vale muito a pena. Reencontrar pessoas queridas, livros perdidos nos sebos e a música das outras gerações.



Novos Baianos - Vamos pro Mundo



Cartola - 1977





Affonso Romano de Sant'Anna, Davi Arrigucci Jr.,









Frédéric François, Drummond - Poesia Completa

Grito de torcida irritante



Passou domingo, dia 12...

O casal Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna na FLIP



10 julho, 2009

surpresa para papai!

Liguei para a promoção "grito de torcida irritante" do programa Irritando Fernanda Young, conheço um grito bastante velho - quem me ensinou foi meu pai, num passeio de carro quando criança. Ele me contou que esse grito de torcida ele usava nos campeonatos esportivos do colégio militar, olha só, na década de 40! Eu nunca mais esqueci:

ZUM ZARAVALHO
PUM ZOROPIN ZOQUÉ
O QUÉ QUÉ
O QUÉ QUÉ
ZUM
PIGLIM PIGLIM PIGLIM
CATMARIMBAU
CATMARIMBAU
UECHAU
UECHAU


E não é que deu certo?! Papai está todo orgulhoso, disse que não vai perder...

06 julho, 2009

FLIP 2009 - sábado


Acordamos e ficamos surpresos com o bom tempo na cidade, a previsão era de chuva, muita chuva. Aliás, uma das coisas engraçadas dessa viagem foi o guarda roupa invernal dos flipeiros. Não foi muito diferente comigo. Mas sabendo que estaria no Rio de Janeiro, levei sandálias e camisetas além dos casacos e cachecóis, uma mala tipicamente feminina, com quase todas as opções... A manhã era ideal para se caminhar, então seguimos pela beira mar, na Rua da Praia, conhecemos a Igreja de Nossa Senhora das Dores que acabara de ser aberta depois de ficar oito anos fechada para reformas. Fiz três pedidos.


As construções em frente ao mar são ainda mais bonitas e maiores, como nessa foto ao lado, um casarão muito bem conservado, com ar-condicionado, um quintal cheio de plantas e com direito a cachorro!

As portas das casas no centro histórico são mais altas, e tem alguns degraus para o piso térreo, para evitar a entrada da água.

Caminhamos até o cais, por ali nem sinal de flipeiros, todos estavam por perto das tendas, assim ficou fácil perceber a tranquilidade da vida local: muitos pescadores e artesãos.

Voltando ao centrinho, as ruas ainda vazias, cruzamos com o autor Cristovão Tezza fotografando a cidade. Estar em Paraty em plena FLIP é inesquecível - faz bem aos olhos pelas belas construções, as águas da baía cheia de barcos coloridos, e simplesmente por cruzar com vários escritores andando pelas ruas, bem naturalmente.

Sentamos para um café na livraria da cidade - a única no centro histórico. E depois de ver Cristovão Tezza passar, o Marcelo Tas apareceu para gravar uma entrevista para o canal ESPN ali mesmo na livraria, como coordenador da FLIP ele falou sobre a FLIP ZONA, um dos vários ambientes da Festa de Literatura Internacional, só que com maior destaque para os jovens. Tas afirmou que nas últimas edições do evento, a gurizada ficava um tanto deslocada da festa, os adultos frequentavam as tendas do telão e dos autores, as crianças na flipinha e nada direcionado ao público mais jovem. Na FLIP ZONA foram exibidos diversos filmes e documentários, muita coisa criada pelos jovens no local, utilizando a câmera de seus celulares.

SÁBADO É DIA DE FLIPINHA

A Praça da Matriz foi uma atração a parte. Estava toda decorada com bonecos tirados das muitas poesias de Bandeira. Havia também "pés de livros", assim a molecada que passava por ali, podia sentar debaixo de uma árvore e fazer uma leitura. Era muitos livros pendurados. Também estavam por ali algumas mocinhas de voz suave e doce, colocavam um tubo colorido em nossos ouvidos e recitavam versos de Manuel Bandeira. Era tudo mágico, mesmo para os adultos que lotaram a praça no sábado. Algumas fotos:

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virgem Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Café com pão
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
...


Cai cai balão!
A molecada salteou-o com atiradeiras
assobios
apupos
pedradas.
Cai cai balão!


Irene preta

Irene boa

Irene sempre de bom humor

Imagino Irene entrando no céu:

- Licença, meu branco!

E São Pedro Bonacheirão:

- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.






E na tenda da Flipinha: Ruth Rocha e Bia Hetzel!

Foi o único bate-papo que assisti na tenda da flipinha e valeu muuuuito a pena! Ruth Rocha está completando 40 anos de carreira, mais de 130 livros publicados, em muitas línguas. Autora do clássico - e por que não um clássico?! - Macelo, Marmelo, Martelo, mediada pela também autora de livros infantis Bia Hetzel, falou sobre começo de sua carreira, aos 38 anos, comentou quais são seus livros favoritos e respondeu a muitas perguntas das crianças maravilhadas com o tom doce de vovó de Ruth Rocha.

Ruth Rocha e Bia Hetzel respondendo a perguntas das crianças

Á noite, a estrela mais brilhante da festa: António Lobo Antunes

A mesa "Escrever é Preciso", uma conversa entre o mestre António Lobo Antunes e o jornalista e também escritor Humberto Werneck começou tímida. Lobo Antunes quase não falou, deixando todos um tanto ansiosos. Quando começou a falar, foi aplauso atrás de apaluso. Para mim , tudo era muito novo: a relação que o autor tem com o Brasil, um de seus avôs viveu por aqui, e o autor emocionou a plateia ao dizer que o Brasil não é para ele um país, e sim "um cheiro, é a comida, maneiras de viver e falar. O Brasil é uma coisa íntima." Também citou muitos nomes da poesia brasileira como Drummond, Murilo Mendes, Cabral, entre outros. Lobo Antunes ainda citou Paulo Mendes Campos, poeta mineiro ainda pouco conhecido por aqui. Para ele, a poesia ensina mais do que a prosa, pois ao ler uma prosa a vontade que tem é de corrigir o texto a todo momento. E essa vontade de corrigir os seus textos foi descrita por ele como um segundo trabalho: o autor disse ser necessário criar com a cabeça e corrigir com as mãos - sugeriu a quem quer escrever, observar um jogo com Garrincha - "é preciso pensar como um Didi e a habilidade de um Garrincha". Ainda falando sobre a criação e o trabalho de um escritor, Lobo Antunes diz que todo livro é uma metáfora e que todo livro é uma reflexão profunda da arte de escrever. Para escrever um bom texto é necessário cortar tudo: advérbios e adjetivos.
Lobo Antunes emocionou ainda mais quando relembrou de uma temporda na França com Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, às 4 da manhã, Ubaldo fazendo feijoada! E quando questionado se ainda escreve, Ubaldo respondeu: Sim, meu pseudônimo é António Lobo Antunes.
Foi a melhor mesa da FLIP, a mais tocante, verdadeira e bonita. Parecia até que estávamos num balanço diferente, embalados pela voz de Lobo Antunes.

e ele só acendeu o cigarro quando chegou na mesa dos autógrafos...

FLIP 2009 - sexta-feira

Mal começou o dia e fomos apressados assistir a mesa "Evocação de um poeta", de pé mesmo, do lado de fora da tenda do telão. Na mesa, os três novos poetas brasileiros, Heitor Ferraz, Eucanaã Ferraz e Angélica Freitas debatiam a atualidade do poeta, o momento misterioso ou ainda rotineiro da criação, suas influências e fizeram leituras belíssimas de poemas como "Porquinho-da-índia", "Namorados", "Maçã" e "Evocação do Recife", bonitas escolhas para evocar a simplicidade do poeta homenageado, Manuel Bandeira. Em sua última fala, Angélica Freitas, leu "Belo Belo"de Bandeira:
Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdad e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero

Leia aqui a entrevista com a poeta Angélica Freitas na revista Vila Cultural.


Seguindo para o centro histórico, passeando pelas ruas de calçamento "pé-de-moleque" fui percebendo a FLIP, a cidade toda em festa, num outro ritmo, palavras, música, cores e poesia. Algo como visitar o Sítio do Pica-Pau Amarelo quando criança.



Compartilhar, criar, trocar. Por todos os lados novos artistas tentando vender seu peixe. Fantasiados, simpáticos ou mesmo declamando versos, estavam mesmo tentando. Ganhamos muita coisa. Como outros que estavam por ali, o casal Macambira e Queridinha, em sua primeira FLIP, escritores de Cordel vindos de Esperança - PB, circularam por todos os lados, todos os dias e eu não podia deixar de trazer alguns exemplares.


De estômago forrado, fomos passear de charrete, a promessa era a de saber mais da história de Paraty, por quem mora lá. O moço falou sobre a fundação da cidade (entre 1540 e 1560), mostrou as casas dos famosos, e entre outras coisas, explicou algo interessante e engenhoso a cerca da construção do centro histórico, que está abaixo do nível do mar, assim, quando a maré subia, lavava as ruas e levava com ela toda a sujeira, por não haver rede de esgoto na época. Hoje as águas ainda invadem o centrinho até certo ponto.




Também foi curioso aprender a origem de algumas expressões como "sem eira nem beira" e de "feito nas coxas" - o telhados das casas eram montados por telhas confeccionadas nas coxas das mulatas, ficando então irregulares - daí a expressão "feito nas coxas" para exemplificar algo mal feito. Além disso, os telhados poderiam ter ou não um acabamento, eira, beira e tribeira. Quanto mais "eiras", mais nobre era a família. Quando um sujeito perdia seus bens, perdia também suas "eiras", ficando sem eira nem beira.















No meio da tarde, andando pela Samuel da Costa, encontramos um grupo - não tenho certeza se local, provavelmente sim, numa batucada de MARACATU! Nada como uma batucada para sacudir o corpo e as ideias, dando mais energia para o resto do dia.





Fim de tarde chegou: Cristovão Tezza e o mexicano Mario Bellatin debatem "O eu profundo e os outros eus" - Tezza publicou em 2007 O Filho Eterno , um misto de ficção e autobiografia da relação de um jovem pai com o filho que tem síndrome de down, já escrevi um pouco sobre o livro aqui. Para o brasileiro , a ficção é um modo de compreensão do mundo e o fato biográfico é mais um elemento da realidade. Ainda citou Paul Auster: "uma vida só existe se se narra".

Já Bellatin afirma não se inspirar em sua vida para criar suas personagens - estas tem deformações congênitas, bem como o autor que nasceu sem o antebraço - apareceu na tenda dos autores com uma prótese em formato de pênis. O autor disse que procura se distanciar do que escreve para se tornar leitor dele mesmo, numa tentativa de desaparecer como autor.
Ambos autores leram trechos de suas novas obras.




A Editora Record distribuiu um trecho inédito do novo livro de Cristovão Tezza, Um Erro Emocional, leia aqui.


O LEITE DERRAMADO AZEDOU


Sexta-feira, 19 horas. A mesa "Sequências brasileiras" foi em disparado a mais concorrida, Milton Hatoum e Chico Buarque - ingressos esgotados na primeira hora ds vendas. Claro que eu também não consegui. Mas paciência, ficarei contente em receber os autógrafos dos autores em meus livros! O debate começou e eu já estava lá, a primeira na fila dos autógrafos. A cada minuto chegava mais e mais gente. Parecia que o debate não ia acabar nunca. Eles esticaram - e muito - o papo, mas dali não conseguia ouvir uma palavra sequer.
E a equipe da FLIP começou assim: - Não sabemos se ele (Chico) vem, não tem nada confirmado. Outra fala: - Não formem fila. - E ainda: - Não há uma fila oficial. - Quando uma multidão seguia crescendo.
Depois de algum tempo: - Ele virá, mas só irá autografar 100 livros, vamos distribuir senhas. - E eu: - E o Hatoum? E o Hatoum??
Sim, é claro que Chico Buarque e seu belo par de olhos causam todo esse frenesi e histeria, mas gente, e o Miltom Hatoum?! - Sim, ele virá também, está confirmado.
A próxima instrução dada a nós foi assim: - Ele só autografará um livro por pessoa, guardem os outros, vamos lá, pessoal, um livro só nas mãos.
A moça olhou para mim, um tanto arisca: - Pode guardar esses livros, só um por pessoa.
- Mas esses são do Hatoum, minha senhora!
O último comando foi assim: - Não adianta colocar seus nomes em papeis, ele só irá assinar o nome dele.
Ai ai. Cansei, cansei mesmo, coisa mais irritante - vou mandar essa historinha verdadeira para a Fernanda Young. Nada é mais irritante do que esperar por duas horas por alguém que não está a fim. Melhor seria não aparecer.
A mesa terminou, fico na ponta dos pés e vejo uma correria, uma GALERA chegando com tudo. O segurança ao meu lado, ainda mais alto que eu (meço 1,80m) estava tenso, bem tenso. E mais seguranças foram chegando. Medo do empurra-empurra. Eu só queria sair logo dali.
O Chico chegou primeiro, a maior berraria histérica de meninos e meninas. Mal aplaudiram o Hatoum que chegou logo depois. Eu ainda esperei o Chico Buarque autografar uma pilha de livros da equipe da FLIP. Pronto, enfim liberada:
- Chico, é para minha filha, Clarice. - E ele rabiscou qualquer coisa. Eu: - Obrigada.
Sigo em direção ao Milton Hatoum, toda encabulada: - É um prazer estar aqui (dãh). Ele sorriu, viu meu nome e o do Kleber: - Kleber? - E eu: - Meu marido. - Fez uma dedicatória.
No segundo volume que entreguei a ele havia anotações logo na primeira página, ele me olhou com cara de interrogação: - Somos estudantes de literatura e professores também. - Agora senti firmeza, Luciana! risos. E mais uma dedicatória carinhosa. Ele ainda estendeu a mão e eu atrapalhada, demorei um pouco a corresponder.
Preciso dizer mais alguma coisa?















a primeiríssima da fila






Milton Hatoum autografando meus livros

FLIP 2009 - quinta-feira

Chegamos a Paraty na hora do almoço, tempo nublado e aquela fome de mais de três horas de viagem. Parando por perto da Rua Domingos Gonçalves de Abreu avistamos alguns restaurantes e fomos passando de porta em porta - sempre aquele ar de botequim carioca que eu amo! Mas foi um certo Margarida Café que nos encantou pelo ambiente charmoso, colorido e musical. O almoço foi perfeito, mas "salgado".














Aproveitando o momento AINDA
sem chuva, levamos a pequena
para ver o mar, pela primeira vez,
na Praia do Jabaquara. E ela não
hesitou em caminhar até a água
e a brincar de correr atrás de recuo
da maré.







No começo da noite, seguimos para a mesa do neodarwinista Richard Dawkins, biólogo inglês que lotou as tendas dos autores e do telão. A mesa mais frequentada por jovens das quais estive. O professor aposentado tem se mostrado um sério defensor do ateísmo, e busca apresentar ao público uma forma mais simples de se entender a Teoria da Evolução. Parecia mesmo tentador.
A associação que o autor fez entre The Canterbury Tales e sua perspectiva de uma romaria "para trás", dos povos em busca da origem da vida foi bastante bacana. Mas me parece que sua ideia de deus foi um tanto materialista e superficial, talvez uma maneira de nos fazer curiosos e procurar seus livros. Acho que irei fazê-lo. Esperava algo mais polêmico, afinal o Brasil é tããão católico...
Para quem ficou curioso, seguem alguns trechos inéditos do livro "O Maior Espetáculo da Terra" distribuído na FLIP pela Companhia das Letras.