“Um filho é a ideia de um filho”; e que, nem sempre, “as coisas coincidem com as ideias que fazemos delas”. Este inconformismo entre sonho e realidade reflete a busca desse andarilho: tornar-se pai.
Trecho para vocês:
"Várias vezes por dia, em sessões de cinco minutos, a criança é colocada sobre a mesa da sala, de bruços. De um lado, ele; de outro, a mulher; segurando a cabeça, a empregada, uma moça tímida, silenciosa, que agora vem todos os dias. Três figuras graves numa mesa de operação. De bruços, a face diante da mão esquerda, que avança ao mesmo tempoem que a perna esquerda também avança; braço esquerdo e perna direita fazem o movimento simétrico de lagarto, sob o comando das mãos adultas, que são os fios da marionete, quando a cabeça é voltada para o outro lado. Há uma cadência nisso - um, dois, feijão com arroz, três , quatro, feijão no prato - a mesma dos passos humanos; uma rede tentaculardo sistema neurológico há de estabelecer dominância cerebral e tudo que dela decorre, ele sonha. No programa, é fundamental reforçar a dominância cerebral, isto é, marcar um dos lados do cérebro como o dominante. Os três se movem como autômatos, naquelas curtas sessões de cinco minutos quase que de hora em hora, quando ele interrompe o livro que escreve - apareceu um bebê no seu livro, o menino Jesus, filho de um burguês vampiro, picareta de imóveis que em 1970 faz discursos edificantes sobre o bem, a moral e os bons costumes, enquanto suga literalmente o sangue da aorta de mulheres jovens e indefesas - e vai para a linha de produção de seu próprio filho. O seu personagem sempre tem o cuidado de proteger os furos caninos n pescoço das vítimas, que desmaiam, com delicados bandeides. O escritor fecha os olhos: talvez seja a ciança que, do seu silêncio, esteja comandando os gestos cadenciados, quase militares, dos três adultos em torno del, e o pai lembra a piada dps pombos que adestram os humanos - e sorri.
Em 1975 estava na Alemanha como imigrante ilegal. Pediu dinheiro emprestado para a passagem de trem Coimbra-Frankfurt e desembarcou na Hauptbahnhof com algumas moedas no bolso, um endereço e o esboço de um mapa das ruas. Era perto dali - poderia ir andando. Atravessou a bela ponte sobre o Main com a mochila nas costas, tentando vencer o pânico que começava a lhe tomar conta da alma. Não conseguia viver completamente o papel juvenil de um Marco Polo descobrindo o mundo, que desenhara para si mesmo. A mítica Alemanha dos livros que leu - Goethe, Thomas Mann, Günter Grass: ele estava ali, pisando aquele solo.Mas havia o medo, onipresente. Se não encontrasse trabalho, o que faria? Era incapaz de dizer uma só palavra e alemão. Chegou enfim ao prédio imenso do Hospital das Clínicas - a interminãvel sequência de letras na fachada lhe sugeria isso, aos pedaços - e foi direto ao subsolo, seguindo as instruções. Deveria procurar um certo Herr Pinheiro. Herr Pinheiro era um simpático argelino que falava todas as línguas do mundo. O medo agora dava espaço para uma euforia crescente - mal terminou de indagar e já foi conduzido a um vestiário, onde recebeu um uniforme todo branco e um armário para guadar suas coisas. Sete marcos a hora, a proposta. Nem precisou dizer sim- sorriu. Euforia. Dominância cerebral, ele pensava, como um mantra, cadenciando os gestos do filho sobre a mesa. Um escravo do antigo Egito, levado às gargalhadas para remar o barco dezoito horas por dia na escuridão do porão - ele riu com a imagem - só pela satisfação de continuar vivo, aguentar a arquitetura daqueles ossos em pé, nem que seja por um único dia a mais. Tão estúpido que veste o uniforme sobre a calça e a camisa, e sai dali um repolho ridículo, até que no corredor uma mulher sorridente, falando uma língua impossível, explicas em gestos bruscos, mas maternais, que ele deve antes tirar a roupa para só então colocar o uniforme. Finalmente adequado, entra na gigantesca lavanderia do hospital. Tempos modernos, ele lembra, estetizando a vida - Chaplin na linha de produção. Como se sente escritor, vive equilibrado no próprio salvo-conduto, o álibi de sua arte imaginária, o eterno observador de si mesmo e dos outros. Alguém que vê, não alguém que vive.
Pega a criança no colo, depois da série de movimentos, e repete a canção idiota que inventou no esforço de construir a imagem de um pai, que ainda não encontra em si mesmo - Era um pitusco pequeninho bonitinho safadinho bagunceiro... - e o devolve ao chão, de face para baixo. A ideia do tempo - não, a presença física do tempo mesmo - só é percebida integralmente quando opróprio tempo, de fato, começa a nos devorar. Antes disso (ele divagará anos depois) , o tempo é a marcação do calendário e mais nada; durante um bom período da vida parece que há uma estabilidade, uma espécie tranquila de eternidade que escorre em tudo que pensamos e fazemos. Derrotamos o tempo; corremos mais rapidamente que ele. Se o demônio aparecesse ali, ele faria o pacto - e sorriu com a ideia. O pai abre o livro de Piaget sobre a inteligência da criança e testa o filho todos os dias - uma corrida contra o tempo, sim, mas nessa época o tempo ainda está imóvel, o que facilita as coisas. Neste momento, se eu ponho esse bonequinho de plástico no chão o bebê vai atrás e vai tentar agarrá-lo; mas se eu ocultá-lo com a mão ou o lenço, a criança vai se desinteressar por completo, como se o boneco desaparecesse. Faz o teste: é verdade. Fica feliz: uma criança normal, fantasia ele. Mais um pouco e o bebê será capaz de reconhecer o boneco apenas pelo pé que ficará à mostra. Talvez amanhã. Ou depois de amanhã. Há um prazo razoável na normalidade. Por enquanto ele ainda não reconhece o boneco apenas pelo pé - o que é normal, ele confere no livro.
Mas o treinamento não terminou. No canto da sala o marceneiro instalou a peça encomendada: uma rampa estreita de madeira que tem a forma de um escorregador para bebês, com proteção lateral. Um linóleo cobre a superfície da madeira. É preciso que essa superfície não seja áspera demais, que não permita o movimento, e nem lisa demais, que leve o bebê a escorregar. A sala se transforma aos poucos num espaço de trabalho; a casa, numa extensão de uma clínica - logo com ele, que passou a vida odiando médicos, hospitais, tratamenos, enfermeiras, remédios, doenças, corredores, morte- uma coisa puxa a outra. Coloca o bebê no topo da rampa, com a cabeça par baixo. Vamos lá, pitusco! Os braços da criança, que está de bruços, impedem naturalmente que ela escorregue - ma so mínimo movimento que ela fizer permiti-lhe descer alguns centímetros. Cria-se uma situação concreta para ajudar o bebê a reencontrar a sua estrada neurológica; segundo a cartilha, a descida da rampa é um auxílio para acelerar o desenvolvimento do rastejar em padrão cruzado, o das crianças normais. Não está no programa, mas o pai ainda coloca um despertador intermitente lá embaixo, no fim da viagem, como um estímulo a mais. A criança não vê o despertador, mas ouve o som estridente, que seus olhos procuram ainda em vão, do alto de seu pequeno abismo.
Deixa lá a criança e tranca-se no quarto para escrever seu livro. O demônio aparece em suas páginas na forma de um dito. Faz dicursos beletristas e virulentos contra DEus e o mundo, e conspira para o fracasso do Ensaio da Paixão, tema do romance. Expressão de um cinismo mal resolvido, hás um toque pesado de grotesco na sua figura. É preciso evitar o estereótipo, ele sabe, pensando alto e longemas não dispõe ainda de um imginário alternativo sólido; vive um mundo, parece, que se esforça duramente para a simplificação mental, e é preciso fugir dela a todo custo. às vezes, tem a viva sensação de que é escrito pelo que escreve, como se suas palavras soubessem mais que ele próprio. (Não sabemos tudo ao mesmo tempo; avançamos soterrando camadas de conhecimento, ele divaga.) Acende outro cigarro e vai à sala - a criança já desceu meio metro. Dá mais corda no despertador - o queijo do ratinho - e volta correndo ao quarto: uma frase imperdível lhe surgiu.
O trabalho na lavanderia era mecânico - uma enorme garra de ferro descia do alto com toneladas de roupas lavadas, largando-as num balcão, e a função dele era separá-las rapidamente. Toalhas de banho, toalhas de rosto, lençóis, fronhas, cada tamanho num carrinho, que assim que ficavam cheios, eram levados para as passadeiras, que por sua vez gastavam as horas esticando manualmente as peças para ofertá-las a uma espécie de impressora rotativa que engolia aquilo, devolvendo tudo dobrado para as mãos de alguém que, com outro carrinho, desaparecia por uma porta distante, de volta ao prédio central."
O filho eterno . Romance. Editora Record, 2007. 223 p.
Prêmio Jabuti - melhor romance
Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) - melhor obra de ficção
Prêmio Bravo! - Livro do Ano
Prêmio Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa - 1º lugar
Prêmio São Paulo de Literatura - Melhor livro do ano 2008
http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/p_fic_o_filho_eterno.htm
Ao menos alguém teve a coragem e a sensibilidade de escrever a respeito desse tema tão sério que é a síndrome de Down.
ResponderExcluirAh, esqueci de dizer, me chamo Magda. Só coloco M. no meu blog de cinema (já que prefiro falar sobre todos os tipos de filmes)para não me expor tanto devido a minha profissão. Pois sou professora de espanhol e só recentemente criei um blog a respeito disso (não está muito bom ainda), quando estiver arrumadinho divulgo o link para você. Ah, esqueci de dizer, sou de Recife, Pernambuco.
e-mail: mlsmhispamerica@gmail.com