Segue a introdução do livro que comecei a ler essa semana, só para dar um gostinho...
Meu desejo é...
De uma certa maneira, este livro pretende escrever a história do desejo em nossa cultura. A história do desejo dramatizado através da poesia. Os poetas sempre foram considerados os grandes cantores do amor. Pois aqui eles nos servem de guias. Na verdade, através da linguagem deles estou querendo falar das fantasias eróticas do homem comum. Se a história do homem é a história de sua repressão, estudar o desejo e a interdição é uma maneira de penetrar melhor nessa mesma história. Aliás, se os poetas não representassem o imaginário social, suas obras não resistiriam nem teriam tido importância na configuração ideológica da comunidade. Portanto, esses autores que aqui estudo não são nem mais nem menos neuróticos que seus leitores. Se os leitores precisam de suas obras para elaborar suas fantasias é que esses textos são o espelho da fala alheia.
Por isso algumas partes têm subtítulos que se parecem a romances de folhetim ou de aventura. Este é um livro de história, onde o personagem principal é o Poeta-Édipo diante da Mulher-Esfinge. Daí esses capítulos do folhetim do desejo com títulos assim: “Ofélia e o Cisne no espelho líquido da morte”, “Do Pan violador ao Arlequim sedutor”, “O macho castrador reage ante a mulher ameaçadora” etc. E cada capítulo se abre com algumas “proposições”, que são a síntese do enredo, para que o leitor se organize melhor nas peripécias inconscientes do texto.
Adianto que este não é um estudo psicanalítico de autores, mas de obras e textos. Não estou, em princípio, interessado em detalhes biográficos de determinados indivíduos, mas preocupado em localizar em seus textos os sintomas que revelam o inconsciente dos textos. Desse modo, estou interessado no inconsciente dos textos. Esse inconsciente surge aqui como sinônimo de ideologia. Entender o inconsciente desses poemas é entender o inconsciente de uma comunidade e, portanto, sua ideologia amorosa. Assim, o que seriam neuroses individuais se transforma em alucinações coletivas, socializadas pela linguagem literária. Nesse sentido, tomo o texto com uma manifestação onírica social. Considero o texto como uma forma de sonho coletivo, pois os leitores abrem seu imaginário às provocações do imaginário do poeta e aí se hospedam. As metáforas e imagens passam a ser de utilidade pública. Estou, portanto, encarando o texto também como uma forma de mito. Se nas comunidades primitivas os mitos serviam para a tribo expressar seus temores, anseios e perplexidades, o texto poético, entre outros, tem essa função antropológica em nossa cultura. O poeta é o xamã que, ao invocar suas alucinações, faz com que, através delas, toda coletividade reviva seus fantasmas.
De uma certa maneira, este livro é também a história da representação do corpo nos (des)encontros amorosos. Sintomaticamente, aí se verá que o corpo feminino ocupa grande parte do discurso, enquanto o corpo masculino é silenciado. E, reveladoramente, embora o corpo masculino esteja ausente, a voz que fala pela mulher é a voz masculina. Essa é uma constatação aparentemente simples, mas de conseqüências graves. Por onde andou o corpo do homem durante todos esses séculos, salvo raríssimas exceções que, por serem tão excepcionais, só confirmam a regra? Evidentemente, essa ausência do corpo masculino e essa abundância do corpo feminino começam a ser explicadas pelo fato de que o homem sempre se considerou o sujeito do discurso, reservando à mulher a categoria de objeto. Como sujeito, portanto, ele se escamoteava, projetando sobre o corpo feminino os seus próprios fantasmas. Aí ele se porta como ventríloquo: o corpo é d outro, mas a voz é sua. Certamente, aí está também um preconceito histórico, segundo o qual o homem se caracteriza pela razão, pelas qualidades do espírito, enquanto a mulher é só instinto e forma física. A conseqüência disso é múltipla: transformada em objeto de análise e de alucinações amorosas, o corpo da mulher também é o campo de exercício do poder masculino. O homem, então, fala sobre a mulher, pensando em falar por ela. Descreve seus sentimentos, pensando descrever os dela. Imprime, enfim, o seu discurso masculino (muita vez machista) sobre o silêncio feminino. Certamente, essa situação se alterou, sobre tudo nos últimos vinte anos. Mas, por questão de espaço e método, não analiso as produções mais recentes. Isso é assunto para outra pesquisa.
Pode parecer estranho o que vou falar, mas a analise do imaginário amoroso mostra que a nossa cultura está cheia de péssimos amantes. E, repito, os poetas não inventaram nada. A análise desses textos, sob a ótica psicanalítica, revela um desajustamento entre o real e o imaginário, e confirma a afirmativa de Platão, de que desejo é indigência. Esses textos são uma espécie de “relatórios” e “depoimentos” sobre a vida amorosa, antes que os americanos vulgarizassem esses procedimentos para saber da vida erótica das pessoas. A rigor, a literatura, como produto cultural, foi sempre o lugar das grandes confissões, porque nela o desejo sempre expôs sua ânsia de realização. Escrever é desejar.
É espantoso ver (com a ajuda Antropologia,da Sociologia e da Historia) como o medo às mulheres (a misoginia) é uma praga, desde as tribos mais primitivas às sociedades mais industrializadas. È aterrador como o mito da mulher castradora, o mito da vagina deitada, da mulher aranha, e da serpente venenosa vem da antiguidade aos textos mais modernos. Já na Grécia, estava aquela Esfinge sufocando os impotentes. Lá está Echidna, metade serpente e metade mulher; lá está Charibdes – mulher sanguessuga engendrada pela Mãe Terra; já Omfalo, como Deusa Terra matava seus amantes; Empuses e Keres eram ninfas-vampiro, e esta bebia o sangue dos jovens apos a batalha. E existe uma Afrodite – conhecida como “Andrófoba” – que assassinava seus amantes como as deusas Ishtar e Anat. As Harpias eram as mulheres-demônio, Melissa era a abelha rainha e Medusa era uma das Górgonas castradoras dos homens. E, entrando pela mitologia germânica, a Walkírias atualizam as Amazonas na castração erótica mortal. Todas essas figuras complementam os textos sagrados, que nos falam da maldade devoradora de Kali, Lilith e Eva.
Por isso, já que a literatura é o mito rrevisitado, aí estão as mulheres fatais, como Salambo (Flaubert), Carmen (Merimée), Herodiade (Mallarmé), Cleópatra (Gauthier), Salomé (Wilde), Kali (Swinburne) tantas ouras, que o imaginário Greco-cristão construiu esquizofrenicamente para dramatizar o temor de Eva e amor de Maria. Portanto, a historia da metáfora amorosa é, em grande parte, a historia do medo de amar e da incapacidade de vencer fantasmas arcaicos e modernos. É clar que essa historia é a historia contada por homens. E, posto que o homem se elegeu como redator da historia, escolheu para a mulher o papel do outro, colocando nela a imagem do mal e da desagregação.
Uma coisa me fascinou entre outras neste estudo: ver como cada época organiza literariamente seu imaginário erótico. É com se fosse colocada uma linguagem ou uma moeda em circulação e, de repente, todos começam a expressar seus fantasmas dentro daquele código. Como se organiza essa linguagem dentro, acima ou a despeitos dos conhecidos “estilos de época”, é matéria de meditação, e a isso me refiro varias vezes dentro desse livro. Por exemplo, durante o Parnasianismo, o padrão feminino de beleza foi representado pela estatua de Venus e todos os poetas se transformaram em escultores-cultores desse mito, esculpindo em seus versos o seu pulsante desejo. Já no Simbolismo, passa-se dessa estatua desejante e desejada como uma Esfinge, para a temática da noiva morta. Quase todo poeta descreve uma noiva morta, embora isso nada tenha a ver com a biografia de cada um, pois maioria deles morreu burocraticamente (in)feliz e casado. No entanto, a poesia está cheia de cadáveres de virgens e Ofélias, visitas a cemitérios e um definhar constante dos amantes ante os caixões. A mesma coisa a respeito das freiras mortas em suas celas, como se houvesse ocorrido com elas e com as noivas alguma epidemia, ou como se o fato de se falar tanto de freiras e monjas fosse sinal de algum surto espiritual que teria levado tantas virgens aos conventos. No entanto, isso não pode ser medido pelo real, mas, sim, pelo imaginário, que se organiza de acordo com outros imaginários importados de outras culturas. Parafraseando conhecida corrente sociológica, pode-se dizer que se instituiu uma política ou economia do imaginário dependente, que faz com que, aqui nos trópicos ou na fria Noruega, se retrabalhem as alucinações de Baudelaire e Poe.
Tendo esse estudo me obrigado a mergulhar mais fundamente em certos períodos, com o Parnasianismo e o Simbolismo, muito pouco estudados por causa do preconceito que o Modernismo lançou contra o século XIX, de repente me defrontei com descobertas fascinantes, que ajudam a entender melhor nossa cultura e ideologia. Um dia ainda se poderá fazer uma reanálise do Modernismo, para se pesar esse prejuízo que nos causou com sua febre de recomeçar do zero as coisas. Pareceu-me que os poetas do Parnasianismo e Simbolismo, entrevistos como autores sintomáticos, podem nos fornecer um rico material para a compreensão literária de nossa cultura. Por pouco, por exemplo, quase não transformo o estudo dos poetas chamados de decadentes e simbolistas num livro autônomo. Mas, tendo resistido a essa tentação e chegando a poetas como Bandeira e Vinícius, procurei revelar outro Bandeira e outro Vinícius que não aqueles conhecidos. E é interessante constatar como a obra de Bandeira está muito mais ligada às matrizes ideológicas do século XIX do que se pensa. E, de repente, me vejo utilizando-o para acabar de entender o que foi o crepuscularismo erótico e estético ao tempo da art nouveau e da belle époque. Por outro lado, e Manuel Bandeira, a dualidade do amante, entre a santa e a prostituta e a constituição de uma prostituta sagrada como simbiose, dramatizam um problema secular, que se espera nossa cultura esteja esgotando. Vinicius é um poeta muito mal conhecido. Sua poesia, sobretudo a inicial, é de suma importância para se conhecer a utilização de mitos arcaicos na literatura moderna. Sua fragmentação dionisíaca e órfica, entre a “mulher única” e “todas as mulheres”, remete para uma esquizomorfose histórica. Meu estudo se interrompe com Vinicius, porque ele fecha um ciclo de visão da mulher que nos vem do Romantismo. Daí para a frente, a questão do desejo se torna mais diferenciada e parece ter passado por um momento histórico, com a grande liberação erótica dos anos 60 e o surgimento de várias outras linguagens e posturas ideológicas realmente instaladas na modernidade. Mas sobre isso tive de me abster de tratar, não só porque é, em si, uma vasta pesquisa, como também porque sou produtor de poesia, que tenta organizar-se dentro de uma nova visão da realidade, onde o amor entre o homem e a mulher se transforma.
Enquanto ia escrevendo esse livro, em cerca de dez anos de pesquisas, cada vez mais me convencia de que o que estava dizendo aqui, sobre a literatura brasileira, era valido para a grande maioria das literaturas ocidentais de que tenho notícia, e poderia ser exemplificado também na música, no teatro ou nas artes plásticas. Durant as pesquisas, várias vezes fui às literaturas francesa, inglesa, italiana, alemã, portuguesa e espanhola, para verificar o trânsito de certas imagens obsessivas do desejo, e de lá voltava com a confirmação da universalidade refletida na literatura brasileira. Estou convencido de que estudos paralelos (e melhores que este) podem ser desenvolvidos, tomando-se aquelas literaturas como objeto, e assim se entenderá melhor o que é a história do desejo no Ocidente.
Pensei, originariamente, em intitular este livro assim: “O Desejo e a Interdição do Desejo na Poesia Brasileira”. Nessa fase, cheguei a publicar um ensaio: “Literatura e Psicanálise: revendo Bilac”, que está no meu livro Por um Novo Conceito de Literatura Brasileira. A idéia do canibalismo ainda não havia se configurado tão claramente nos textos que estudava. Naquela direção, estudaria a questão de outra maneira: tratava-se de ver como o desejo se deixava representar, tanto na figura da mulher quanto na figura da pátria e na própria palavra usada pelo poeta. Assim, em poemas como “O Caçador de Esmeraldas” (Bilac) e “Martim Cererê” (Cassiano Ricardo), a pátria era a mulher onde o conquistador-colonizador ia verter o sêmen do progresso. Confirmava-se a falocracia econômica, num cruzamento da Psicanálise com a História e a Sociologia. Por outro lado, tomado como fetiche, a palavra (sobretudo nos textos onde o poeta confessa a sua ars poética e nos chamados movimentos de Vanguarda) converte-se no objeto da pulsão erótica. O poeta fala da palavra como se fala de uma mulher. Não é outra, aliás, a direção do discurso filosófico e estético ocidental: a verdade é uma mulher atrás de um véu, e cabe ao pensador viril despir, possuir ou violentar esse ser desejável e desejante com seu logos spermaticos.
Ditas, mais ou menos, algumas das coisas que pretendi, agora confesso algumas carências deste livro. Por exemplo: preferi trabalhar apenas com poesia, por questão de método, mas se poderia desenvolver igual estudo sobre a ficção. Dezenas de alunos meus realizaram teses de mestrado e doutorado explorando esses caminhos no romance, demonstrando como é fecunda essa linha de pesquisa. Por outro lado, intencionalmente, não me concentrei nos textos escritos por mulheres: isso seria uma outra empreitada, para a qual estimulei sobretudo alunas em suas teses e projetos de pesquisas. Sei que só quando se desentranhar do silencio a voz feminina recalcada, se terá um panorama mais amplo da história do desejo em nossa cultura.
As analises de poemas, aqui, não são exaustivas. Tive de me conter para não realizar aquilo que nos seminários e cursos tenho a oportunidade de desenvolver com os alunos. Seria, no entanto, interessante publicar, complementarmente a estas analises, um dia e em outro espaço. Por outro lado ia percebendo que, ao estudar o Romantismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, grande numero de autores menores e desconhecidos ajudava a reconstituir uma teia de significados importantes para a análise do inconsciente ideológico. Por serem autores menores, cristalizavam com mais facilidade a linguagem alheia. Eram autores sintomáticos. Por outro lado, como a maioria dos autores estudados viveu e escreveu em completa ignorância do que era a Psicanálise, demonstravam uma espontaneidade às vezes comovedora. Certamente, alguns autores modernos, já sabedores dos mecanismos expostos a partir de Freud, acautelam-se mais ao escrever; disfarce que muita vez se converte em denuncia.
Aproximando-me do fim, esclareço que esse estudo é interdisciplinar por natureza. A Psicanálise aqui é o fio condutor, em torno do qual se armam os conhecimentos antropológicos, sociológicos, históricos e literários. Por outro lado, utilizei-me tanto de Freud e Jung quanto de Melanie Klein ou Lacan, quando julguei necessário e procurando um discurso de coerência que atravessasse o discurso deles e de outros ligados a essas escolas. Muitas vezes, surpreendi-me com o fato d que Freud, Lacan ou Jung pudessem ser falocêntricos, como hoje se tornou fácil demonstrar. Espanta o caráter de enigma que conferem à mulher, como se estivessem realmente diante de outro. É sintomático que seja Freud quem tenha dito: “A grande questão... para a qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza da mulher é a seguinte: O que querem elas enfim?”.
O titulo do livro, O Canibalismo Amoroso, por cobrir praticamente todas as áreas em estudo nesse volume e pela multiplicidade de significados, pareceu-me sinteticamente mais justo. Preferi não teorizar, nesta introdução, sobre esse assunto partir logo para a análise objetiva dos textos, introduzindo, aos poucos, a teoria sobre o canibalismo, toda vez que fosse necessária. O canibalismo é um traço em nossa cultura, muito mais significativo do que se pensa, tendo gerado até movimentos estéticos vanguardistas na Europa e no Brasil no princípio do século. Não é a toa que o cristianismo é tido como representante, no Ocidente, da ordem canibal ancestral. A idéia do ágape cristão (ceia do amor) e o ritual da hóstia (palavra que significa “vitima sacrificial”) sã uma atualização de um rito intemporal, onde deuses comem homens, homens comem deuses, ou, então, são dramatizados no sangue dos animais mediadores. O canibalismo como ritual pode ser visto, por exemplo, na era cristã. Os epiléticos, em Roma, bebiam o sangue quente dos gladiadores, e o médico do Papa Inocêncio VIII recomendou-lhe sangue de três crianças de dez anos. Da mitologia grega aos mitos indígenas brasileiros, abundam a omofagia e a antropofagia. Por isso, o canibalismo amoroso é apenas uma das formas desse ritual; talvez o que concentre o patológico, o religioso, o alimentar, e, imaginariamente, o mais viável e compulsivo. O leitor verá que, da mulata romântica, abatida e servida na cama-e-mesa do senhor, à “Receita de Mulher” de Vinicius de Moraes, a metáfora persiste como um álibi duplo. O canibalismo amoroso pode realizar-se através da violência sadomasoquista ou através da sedução órfica e dionisíaca.
De uma certa maneira, este livro pretende escrever a história do desejo em nossa cultura. A história do desejo dramatizado através da poesia. Os poetas sempre foram considerados os grandes cantores do amor. Pois aqui eles nos servem de guias. Na verdade, através da linguagem deles estou querendo falar das fantasias eróticas do homem comum. Se a história do homem é a história de sua repressão, estudar o desejo e a interdição é uma maneira de penetrar melhor nessa mesma história. Aliás, se os poetas não representassem o imaginário social, suas obras não resistiriam nem teriam tido importância na configuração ideológica da comunidade. Portanto, esses autores que aqui estudo não são nem mais nem menos neuróticos que seus leitores. Se os leitores precisam de suas obras para elaborar suas fantasias é que esses textos são o espelho da fala alheia.
Por isso algumas partes têm subtítulos que se parecem a romances de folhetim ou de aventura. Este é um livro de história, onde o personagem principal é o Poeta-Édipo diante da Mulher-Esfinge. Daí esses capítulos do folhetim do desejo com títulos assim: “Ofélia e o Cisne no espelho líquido da morte”, “Do Pan violador ao Arlequim sedutor”, “O macho castrador reage ante a mulher ameaçadora” etc. E cada capítulo se abre com algumas “proposições”, que são a síntese do enredo, para que o leitor se organize melhor nas peripécias inconscientes do texto.
Adianto que este não é um estudo psicanalítico de autores, mas de obras e textos. Não estou, em princípio, interessado em detalhes biográficos de determinados indivíduos, mas preocupado em localizar em seus textos os sintomas que revelam o inconsciente dos textos. Desse modo, estou interessado no inconsciente dos textos. Esse inconsciente surge aqui como sinônimo de ideologia. Entender o inconsciente desses poemas é entender o inconsciente de uma comunidade e, portanto, sua ideologia amorosa. Assim, o que seriam neuroses individuais se transforma em alucinações coletivas, socializadas pela linguagem literária. Nesse sentido, tomo o texto com uma manifestação onírica social. Considero o texto como uma forma de sonho coletivo, pois os leitores abrem seu imaginário às provocações do imaginário do poeta e aí se hospedam. As metáforas e imagens passam a ser de utilidade pública. Estou, portanto, encarando o texto também como uma forma de mito. Se nas comunidades primitivas os mitos serviam para a tribo expressar seus temores, anseios e perplexidades, o texto poético, entre outros, tem essa função antropológica em nossa cultura. O poeta é o xamã que, ao invocar suas alucinações, faz com que, através delas, toda coletividade reviva seus fantasmas.
De uma certa maneira, este livro é também a história da representação do corpo nos (des)encontros amorosos. Sintomaticamente, aí se verá que o corpo feminino ocupa grande parte do discurso, enquanto o corpo masculino é silenciado. E, reveladoramente, embora o corpo masculino esteja ausente, a voz que fala pela mulher é a voz masculina. Essa é uma constatação aparentemente simples, mas de conseqüências graves. Por onde andou o corpo do homem durante todos esses séculos, salvo raríssimas exceções que, por serem tão excepcionais, só confirmam a regra? Evidentemente, essa ausência do corpo masculino e essa abundância do corpo feminino começam a ser explicadas pelo fato de que o homem sempre se considerou o sujeito do discurso, reservando à mulher a categoria de objeto. Como sujeito, portanto, ele se escamoteava, projetando sobre o corpo feminino os seus próprios fantasmas. Aí ele se porta como ventríloquo: o corpo é d outro, mas a voz é sua. Certamente, aí está também um preconceito histórico, segundo o qual o homem se caracteriza pela razão, pelas qualidades do espírito, enquanto a mulher é só instinto e forma física. A conseqüência disso é múltipla: transformada em objeto de análise e de alucinações amorosas, o corpo da mulher também é o campo de exercício do poder masculino. O homem, então, fala sobre a mulher, pensando em falar por ela. Descreve seus sentimentos, pensando descrever os dela. Imprime, enfim, o seu discurso masculino (muita vez machista) sobre o silêncio feminino. Certamente, essa situação se alterou, sobre tudo nos últimos vinte anos. Mas, por questão de espaço e método, não analiso as produções mais recentes. Isso é assunto para outra pesquisa.
Pode parecer estranho o que vou falar, mas a analise do imaginário amoroso mostra que a nossa cultura está cheia de péssimos amantes. E, repito, os poetas não inventaram nada. A análise desses textos, sob a ótica psicanalítica, revela um desajustamento entre o real e o imaginário, e confirma a afirmativa de Platão, de que desejo é indigência. Esses textos são uma espécie de “relatórios” e “depoimentos” sobre a vida amorosa, antes que os americanos vulgarizassem esses procedimentos para saber da vida erótica das pessoas. A rigor, a literatura, como produto cultural, foi sempre o lugar das grandes confissões, porque nela o desejo sempre expôs sua ânsia de realização. Escrever é desejar.
É espantoso ver (com a ajuda Antropologia,da Sociologia e da Historia) como o medo às mulheres (a misoginia) é uma praga, desde as tribos mais primitivas às sociedades mais industrializadas. È aterrador como o mito da mulher castradora, o mito da vagina deitada, da mulher aranha, e da serpente venenosa vem da antiguidade aos textos mais modernos. Já na Grécia, estava aquela Esfinge sufocando os impotentes. Lá está Echidna, metade serpente e metade mulher; lá está Charibdes – mulher sanguessuga engendrada pela Mãe Terra; já Omfalo, como Deusa Terra matava seus amantes; Empuses e Keres eram ninfas-vampiro, e esta bebia o sangue dos jovens apos a batalha. E existe uma Afrodite – conhecida como “Andrófoba” – que assassinava seus amantes como as deusas Ishtar e Anat. As Harpias eram as mulheres-demônio, Melissa era a abelha rainha e Medusa era uma das Górgonas castradoras dos homens. E, entrando pela mitologia germânica, a Walkírias atualizam as Amazonas na castração erótica mortal. Todas essas figuras complementam os textos sagrados, que nos falam da maldade devoradora de Kali, Lilith e Eva.
Por isso, já que a literatura é o mito rrevisitado, aí estão as mulheres fatais, como Salambo (Flaubert), Carmen (Merimée), Herodiade (Mallarmé), Cleópatra (Gauthier), Salomé (Wilde), Kali (Swinburne) tantas ouras, que o imaginário Greco-cristão construiu esquizofrenicamente para dramatizar o temor de Eva e amor de Maria. Portanto, a historia da metáfora amorosa é, em grande parte, a historia do medo de amar e da incapacidade de vencer fantasmas arcaicos e modernos. É clar que essa historia é a historia contada por homens. E, posto que o homem se elegeu como redator da historia, escolheu para a mulher o papel do outro, colocando nela a imagem do mal e da desagregação.
Uma coisa me fascinou entre outras neste estudo: ver como cada época organiza literariamente seu imaginário erótico. É com se fosse colocada uma linguagem ou uma moeda em circulação e, de repente, todos começam a expressar seus fantasmas dentro daquele código. Como se organiza essa linguagem dentro, acima ou a despeitos dos conhecidos “estilos de época”, é matéria de meditação, e a isso me refiro varias vezes dentro desse livro. Por exemplo, durante o Parnasianismo, o padrão feminino de beleza foi representado pela estatua de Venus e todos os poetas se transformaram em escultores-cultores desse mito, esculpindo em seus versos o seu pulsante desejo. Já no Simbolismo, passa-se dessa estatua desejante e desejada como uma Esfinge, para a temática da noiva morta. Quase todo poeta descreve uma noiva morta, embora isso nada tenha a ver com a biografia de cada um, pois maioria deles morreu burocraticamente (in)feliz e casado. No entanto, a poesia está cheia de cadáveres de virgens e Ofélias, visitas a cemitérios e um definhar constante dos amantes ante os caixões. A mesma coisa a respeito das freiras mortas em suas celas, como se houvesse ocorrido com elas e com as noivas alguma epidemia, ou como se o fato de se falar tanto de freiras e monjas fosse sinal de algum surto espiritual que teria levado tantas virgens aos conventos. No entanto, isso não pode ser medido pelo real, mas, sim, pelo imaginário, que se organiza de acordo com outros imaginários importados de outras culturas. Parafraseando conhecida corrente sociológica, pode-se dizer que se instituiu uma política ou economia do imaginário dependente, que faz com que, aqui nos trópicos ou na fria Noruega, se retrabalhem as alucinações de Baudelaire e Poe.
Tendo esse estudo me obrigado a mergulhar mais fundamente em certos períodos, com o Parnasianismo e o Simbolismo, muito pouco estudados por causa do preconceito que o Modernismo lançou contra o século XIX, de repente me defrontei com descobertas fascinantes, que ajudam a entender melhor nossa cultura e ideologia. Um dia ainda se poderá fazer uma reanálise do Modernismo, para se pesar esse prejuízo que nos causou com sua febre de recomeçar do zero as coisas. Pareceu-me que os poetas do Parnasianismo e Simbolismo, entrevistos como autores sintomáticos, podem nos fornecer um rico material para a compreensão literária de nossa cultura. Por pouco, por exemplo, quase não transformo o estudo dos poetas chamados de decadentes e simbolistas num livro autônomo. Mas, tendo resistido a essa tentação e chegando a poetas como Bandeira e Vinícius, procurei revelar outro Bandeira e outro Vinícius que não aqueles conhecidos. E é interessante constatar como a obra de Bandeira está muito mais ligada às matrizes ideológicas do século XIX do que se pensa. E, de repente, me vejo utilizando-o para acabar de entender o que foi o crepuscularismo erótico e estético ao tempo da art nouveau e da belle époque. Por outro lado, e Manuel Bandeira, a dualidade do amante, entre a santa e a prostituta e a constituição de uma prostituta sagrada como simbiose, dramatizam um problema secular, que se espera nossa cultura esteja esgotando. Vinicius é um poeta muito mal conhecido. Sua poesia, sobretudo a inicial, é de suma importância para se conhecer a utilização de mitos arcaicos na literatura moderna. Sua fragmentação dionisíaca e órfica, entre a “mulher única” e “todas as mulheres”, remete para uma esquizomorfose histórica. Meu estudo se interrompe com Vinicius, porque ele fecha um ciclo de visão da mulher que nos vem do Romantismo. Daí para a frente, a questão do desejo se torna mais diferenciada e parece ter passado por um momento histórico, com a grande liberação erótica dos anos 60 e o surgimento de várias outras linguagens e posturas ideológicas realmente instaladas na modernidade. Mas sobre isso tive de me abster de tratar, não só porque é, em si, uma vasta pesquisa, como também porque sou produtor de poesia, que tenta organizar-se dentro de uma nova visão da realidade, onde o amor entre o homem e a mulher se transforma.
Enquanto ia escrevendo esse livro, em cerca de dez anos de pesquisas, cada vez mais me convencia de que o que estava dizendo aqui, sobre a literatura brasileira, era valido para a grande maioria das literaturas ocidentais de que tenho notícia, e poderia ser exemplificado também na música, no teatro ou nas artes plásticas. Durant as pesquisas, várias vezes fui às literaturas francesa, inglesa, italiana, alemã, portuguesa e espanhola, para verificar o trânsito de certas imagens obsessivas do desejo, e de lá voltava com a confirmação da universalidade refletida na literatura brasileira. Estou convencido de que estudos paralelos (e melhores que este) podem ser desenvolvidos, tomando-se aquelas literaturas como objeto, e assim se entenderá melhor o que é a história do desejo no Ocidente.
Pensei, originariamente, em intitular este livro assim: “O Desejo e a Interdição do Desejo na Poesia Brasileira”. Nessa fase, cheguei a publicar um ensaio: “Literatura e Psicanálise: revendo Bilac”, que está no meu livro Por um Novo Conceito de Literatura Brasileira. A idéia do canibalismo ainda não havia se configurado tão claramente nos textos que estudava. Naquela direção, estudaria a questão de outra maneira: tratava-se de ver como o desejo se deixava representar, tanto na figura da mulher quanto na figura da pátria e na própria palavra usada pelo poeta. Assim, em poemas como “O Caçador de Esmeraldas” (Bilac) e “Martim Cererê” (Cassiano Ricardo), a pátria era a mulher onde o conquistador-colonizador ia verter o sêmen do progresso. Confirmava-se a falocracia econômica, num cruzamento da Psicanálise com a História e a Sociologia. Por outro lado, tomado como fetiche, a palavra (sobretudo nos textos onde o poeta confessa a sua ars poética e nos chamados movimentos de Vanguarda) converte-se no objeto da pulsão erótica. O poeta fala da palavra como se fala de uma mulher. Não é outra, aliás, a direção do discurso filosófico e estético ocidental: a verdade é uma mulher atrás de um véu, e cabe ao pensador viril despir, possuir ou violentar esse ser desejável e desejante com seu logos spermaticos.
Ditas, mais ou menos, algumas das coisas que pretendi, agora confesso algumas carências deste livro. Por exemplo: preferi trabalhar apenas com poesia, por questão de método, mas se poderia desenvolver igual estudo sobre a ficção. Dezenas de alunos meus realizaram teses de mestrado e doutorado explorando esses caminhos no romance, demonstrando como é fecunda essa linha de pesquisa. Por outro lado, intencionalmente, não me concentrei nos textos escritos por mulheres: isso seria uma outra empreitada, para a qual estimulei sobretudo alunas em suas teses e projetos de pesquisas. Sei que só quando se desentranhar do silencio a voz feminina recalcada, se terá um panorama mais amplo da história do desejo em nossa cultura.
As analises de poemas, aqui, não são exaustivas. Tive de me conter para não realizar aquilo que nos seminários e cursos tenho a oportunidade de desenvolver com os alunos. Seria, no entanto, interessante publicar, complementarmente a estas analises, um dia e em outro espaço. Por outro lado ia percebendo que, ao estudar o Romantismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, grande numero de autores menores e desconhecidos ajudava a reconstituir uma teia de significados importantes para a análise do inconsciente ideológico. Por serem autores menores, cristalizavam com mais facilidade a linguagem alheia. Eram autores sintomáticos. Por outro lado, como a maioria dos autores estudados viveu e escreveu em completa ignorância do que era a Psicanálise, demonstravam uma espontaneidade às vezes comovedora. Certamente, alguns autores modernos, já sabedores dos mecanismos expostos a partir de Freud, acautelam-se mais ao escrever; disfarce que muita vez se converte em denuncia.
Aproximando-me do fim, esclareço que esse estudo é interdisciplinar por natureza. A Psicanálise aqui é o fio condutor, em torno do qual se armam os conhecimentos antropológicos, sociológicos, históricos e literários. Por outro lado, utilizei-me tanto de Freud e Jung quanto de Melanie Klein ou Lacan, quando julguei necessário e procurando um discurso de coerência que atravessasse o discurso deles e de outros ligados a essas escolas. Muitas vezes, surpreendi-me com o fato d que Freud, Lacan ou Jung pudessem ser falocêntricos, como hoje se tornou fácil demonstrar. Espanta o caráter de enigma que conferem à mulher, como se estivessem realmente diante de outro. É sintomático que seja Freud quem tenha dito: “A grande questão... para a qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza da mulher é a seguinte: O que querem elas enfim?”.
O titulo do livro, O Canibalismo Amoroso, por cobrir praticamente todas as áreas em estudo nesse volume e pela multiplicidade de significados, pareceu-me sinteticamente mais justo. Preferi não teorizar, nesta introdução, sobre esse assunto partir logo para a análise objetiva dos textos, introduzindo, aos poucos, a teoria sobre o canibalismo, toda vez que fosse necessária. O canibalismo é um traço em nossa cultura, muito mais significativo do que se pensa, tendo gerado até movimentos estéticos vanguardistas na Europa e no Brasil no princípio do século. Não é a toa que o cristianismo é tido como representante, no Ocidente, da ordem canibal ancestral. A idéia do ágape cristão (ceia do amor) e o ritual da hóstia (palavra que significa “vitima sacrificial”) sã uma atualização de um rito intemporal, onde deuses comem homens, homens comem deuses, ou, então, são dramatizados no sangue dos animais mediadores. O canibalismo como ritual pode ser visto, por exemplo, na era cristã. Os epiléticos, em Roma, bebiam o sangue quente dos gladiadores, e o médico do Papa Inocêncio VIII recomendou-lhe sangue de três crianças de dez anos. Da mitologia grega aos mitos indígenas brasileiros, abundam a omofagia e a antropofagia. Por isso, o canibalismo amoroso é apenas uma das formas desse ritual; talvez o que concentre o patológico, o religioso, o alimentar, e, imaginariamente, o mais viável e compulsivo. O leitor verá que, da mulata romântica, abatida e servida na cama-e-mesa do senhor, à “Receita de Mulher” de Vinicius de Moraes, a metáfora persiste como um álibi duplo. O canibalismo amoroso pode realizar-se através da violência sadomasoquista ou através da sedução órfica e dionisíaca.
Oi Lu, obrigado pela visita e carinho!
ResponderExcluirA tinta que uso para maquiagem das bonecas é a plástica - de preferência da marca Acrilex. O segredo são as técnicas empregadas para pintura, pincéis, firmeza na mão...
Beijão e qualquer coisa, "tâmos aí"!