23 janeiro, 2009

Das origens: poesia, palavra, canto e corpo

“A música apodrece quando se afasta muito da dança.
A poesia se atrofia quando se afasta muito da música.”(Ezra Pound)
I
É certo que a linguagem é um atributo humano, e que por meio dela o homem expressa seus pensamentos, emoções, comunica-se com seus semelhantes, diferindo-se dos outros animais que possuem apenas a voz. Segundo Rousseau, a linguagem surgiu da imprescindível necessidade de comunicação: o parir de uma cólera ou de uma paixão, que a princípio era alegórica e por isso vinculada ao universo poético. “Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas.” (ROUSSEAU, 1987, p.160).
Na mitologia grega, Eco foi castigada por acobertar Zeus em seus adultérios, Hera condenou-a a não mais falar: repetiria apenas os últimos sons das palavras que ouvisse. Sua desventura levou-a a transformar-se em pedra. Reiterando a idéia de Rousseau, conclui-se que o indivíduo incapaz de expressar seus sentimentos e crenças está condenado à imobilidade, à petrificação da sensibilidade.
Na sociedade pós-moderna, a submissão às leis do mercado reduziu a produção artística, incluindo a poesia, a um produto de consumo, ou seja, as obras de arte tornaram-se meras mercadorias de entretenimento, subtraindo todo seu poder simbólico, imergindo a sociedade no sono e no caos. A essa consideração, acrescenta Octavio Paz: (1993, p.134): “O mercado é justo. Talvez. Mas é cego e surdo, não ama a literatura nem o risco, não sabe nem pode escolher. Sua censura não é ideológica: não tem idéias. Sabe de preços, não de valores.”
Como efeito dessa massificação, o homem tem se distanciado dessa forma visceral de conhecimento e de estímulo à imaginação e criatividade. Porém, é com o intuito de mostrar que nesse mar turbulento ainda resistem algumas ilhas que não permitem o desvanecer dessa voz primeira, que proponho um estudo acerca da poesia como elemento que acompanha a evolução do homem.




II Gênesis: poética-musical

Linguagem e poesia nasceram juntas e estavam relacionadas à atribuição de nomes a todas as coisas – mas tais nomes não eram a representação do que se dizia, e sim a sua essência. Conforme Bosi (2000, p. 163): “O poder de nomear significava para os antigos hebreus dar às coisas a sua verdadeira natureza, ou reconhecê-la. Esse poder é o fundamento da linguagem, e , por extensão o fundamento da poesia.”
Posteriormente, encontramos a poesia vinculada ao canto como forma de expressão do sentimento amoroso de um indivíduo e, também, como instrumento nas relações com os poderes transcendentes de uma comunidade: canto religioso, canto laborial, canto guerreiro e canto festivo. Os homens falavam aos deuses por versos ritmados para garantir a melhor retenção na memória, e dessa forma, colocavam-nos na mesma sintonia. A primazia era, então, da repetição e do ritmo, em detrimento do conteúdo. À expressão da emoção sem ornatos e espontânea atribui-se o efeito de encantamento ou fascinação.

“Ritmo, repetição. Eis os dois elementos essenciais que, na poesia primitiva, ordenam a ‘expressão verbal’ , por que se comunica e emoção que a provoca. Pode dizer-se assim, que a poesia é o verbo comovido que se faz música, a qual se repete para renovar o encanto, ou continuar a libertação da perturbação interior.” (CIDADE, 1946, p.17)

Por ser um produto da criação humana, a arte modifica-se de acordo com o espírito de uma época, portanto, não poderia ser diferente com o ritmo. No princípio, ou seja, na poesia primitiva o ritmo tinha a função de ressaltar num movimento cíclico de repetição a tonicidade da linguagem oral. Na Antiguidade Clássica - Renascença, racional e intencionalmente, o método usado para medir o verso era quantitativo (duração), conhecido como pés métricos, ou seja, alternância entre sílabas longas e breves, sendo essa considerada a alma da poesia.
Já no Romantismo, a idéia de harmonia torna-se uma ferramenta imprescindível que evoca significados pelas diferentes tonalidades do som, agora é o sentido que é priorizado na criação poética.
No poema moderno, a partir do Simbolismo, o verso passou a ser medido pelo critério da intensidade, isto é, a tonicidade das sílabas, com intuito de retomar a musicalidade das frases. Surgiu assim o verso livre, que apresenta um ritmo solto e irregular. “Em poesia, os simbolistas deram os primeiros passos que culminaram na liberação rítmica do Modernismo. Em lugar da simetria, surge a irregularidade, o contraste, a dissonância, o efeito imprevisível ou inesperado.” (GOLDSTEIN, 2005, p.38).
Vê-se que o laço entre poesia e música, apesar de ter se afrouxado por um período, é latente até nas designações das diferentes formas poéticas, a saber: balada, ode, canção, soneto, rondão. O fato que constitui a comunicação poética é a inclinação de provocar mais prazer do que informação. A transmissão do texto poético pela voz induz à apoteose dos sentidos, esse efeito sinestésico é o gerador de um maior prazer. Com isso, muitas são as possibilidades a se explorar: poesia meramente recitada, poesia cantada ou acompanhada por instrumentos.

III O que dizem o corpo e a voz

De fato, a poesia é a arte da linguagem, no entanto, a realização poética integral se dá por meio da performance[1] - conjunto formado pelo corpo e a voz que tem como objetivo conferir à poesia a totalidade de um sentido. Há uma espécie de imanização entre intérprete e público quando o primeiro se dá (entrega-se) no palco e o ouvinte, por sua vez, dialoga com o intérprete do texto por meio de gestos, olhares, suspiros.
Nesse contexto, participar de um concerto de rock ou de MPB, ou ainda, assistir a uma peça de teatro, ir a um sarau provoca um encantamento de mesma natureza. Contrariamente ao ato de leitura do texto poético, leitura essa solitária, acrescenta Paul Zumthor:

“A voz, o corpo trazem num plano que lhes é próprio, um sentido: a particularidade desse sentido é ser perceptível globalmente, não podendo ser decomposto em signos discretos, como ocorre com o texto; é um sentido que só pode ser traduzido em linguagem pelo viés de comentários. No poema escrito e lido, o que ocorre é o sentido ‘lingüístico’ (se posso expressar-me assim!), certamente com toda sua espessura, sua complexidade provável; mas quando há performance, uma pluralidade significante se constitui da qual só uma parte decorre do emprego de um sistema de signos; o resto faz sentido de um modo que não pode ser analisado.” (ZUMTHOR, 2005, p.119)


IV O silêncio como significado

Falar em voz, sem considerar aquilo que é anterior a ela, ou seja, o silêncio, seria partir de uma proposta unilateral. Explico: quando me refiro ao silêncio quero evocar a idéia de que entre o eu-lírico e o objeto da poesia há um vazio decorrente da impossibilidade do poeta apreender o “outro” completamente e de transmiti-lo por meio da palavra, por isso diz-se que “a poesia é anterior à linguagem” (ZUMTHOR, 2005, p.139)
O silêncio posterior ao enunciado possui significado a partir do momento em que ecoa a tonalidade afetiva do som que o precedeu (a incógnita, a afirmação, as entrelinhas, a pluralidade...). Para ilustrar o que disse acima em poucas linhas:

de som a som
ensino o silêncio
a ser sibilino

de sino em sino
o silêncio ao som
ensino

Paulo Leminski


V

A poesia é a linguagem usada pelo homem para expressar a imensa necessidade de comunicar o que sente – gênero lírico = poesia.
No século XX, a poesia resistiu à tentativa de sua padronização de forma contundente. Maiakóvski, poeta futurista russo, em 1926 publicou um ensaio no qual procurava ilustrar a sua poética, ou a forma como ele a entendia. Motivado pelo surgimento de manuais que garantiam ensinar a escrever em prosa e em verso. No Brasil, os participantes da semana de 22, rompendo com os tratadistas parnasianos, trouxeram da Europa as idéias de vanguarda e adaptaram-nas (antropofagismo) à nossa cultura. Em seguida, na década de 50, os concretistas, retomando os ideais modernistas, revolucionaram o conceito da forma na poesia, utilizando todo o espaço da folha de papel, inventando o poema-coisa. Posteriormente, nos anos 70, a poesia marginal renova o cenário, trazendo à tona a época conturbada do regime ditatorial, refletindo a inanição intelectual em poemas quase niilistas.
A cura para o caos em que vivemos, por conta da massificação e “coisificação” da arte é, para Octavio Paz, a poesia – pedra de escândalo da modernidade. “Contra vento e maré, a poesia circula e é lida. Rebelde ao mercado, quase sem preço; não importa: vai de boca em boca, como o ar e a água. Sua valia e utilidade não são mensuráveis: um homem rico em poesia pode ser um mendigo.” (Paz, 1993, p.143)
Junto a esse texto, apresento um apanhado de criações poéticas, gravadas em um CD, a fim de dar mais uma prova de que a boa poesia é atemporal e não cede às regras infligidas pela cultura de massa.








[1] “O termo performance se impõe absolutamente, no sentido que lhe dão hoje em dia, a partir dos anglo-saxões a performance é virtualmente um ato teatral, em que se integram todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a presença de um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe.” (ZUMTHOR, 2005, p.69)

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